A China legou ao mundo a imagem da mulher oriental de andar contido e pés diminutos. Na verdade, a figura feminina delicada e frágil escondia um ritual de mutilação — atualmente proibido pelo governo comunista — ao qual as mulheres das famílias aristocráticas eram submetidas, na infância: conduzidas a uma cadeira especialmente construída para a cerimônia, tinham seus pés esmagados e confinados, para sempre, em apertadas ataduras, que os aleijavam. Além da limitação no andar, as chinesas carregavam, para o resto de suas vidas, a dor aguda produzida pelas articulações comprimidas e trituradas. O ritual objetivava preparar a menina para o jogo de sedução com os futuros candidatos a maridos. Quanto menor os pés, mais encantos haveria na rotina conjugal. E aos novos contornos forjados pela deformidade dos dedos eram atribuídos valores (o formato flor de lótus era o grau máximo) que garantiriam maior ou menor prazer sexual aos maridos. Esse ritual é o mote do livro COM OS PÉS ATADOS, de Kathryn Harrison. Na China do século 19, May é uma representante dessa casta de mulheres que têm os seus pés quebrados e atados com a promessa de beleza e sedução. Conduzida a um casamento com um homem que, além de sádico, mantinha outras quatro esposas em casa, May frustra-se e foge para Xangai, onde passa a viver como cortesã e encontra uma vida de liberdade que até então desconhecia. Mas é ao casar com um imigrante que May mergulha na cultura ocidental. Um homem que, ao contrário da maioria que visita o seu quarto, sente prazer observando os pés deformados da chinesa. A partir desta união, a narrativa de Kathryn Harrison confronta May, seus traumas físicos e heranças orientais com as possibilidades oferecidas pelo Ocidente. Uma segunda história corre paralela à da protagonista: é a de sua sobrinha, Alice, uma jovem libertária que, não raro, escandaliza seus parentes. May e Alice são como mãe e filha. A sensação de estarmos em ambientes perfumados de incenso e de ópio atravessa as páginas de COM OS PÉS ATADOS, revelando o clima ao mesmo tempo sufocante da Xangai do século 19, com seu comércio a céu aberto e castigos públicos das mulheres que cometiam algum delito — segundo as leis e a cultura locais — e de extremo erotismo e sensualidade. Um mundo no qual o destino da mulher é a dedicação exclusiva aos prazeres do homem. May tenta escapar desse fado ao fugir para Xangai e sair à procura de um marido ocidental. Mas a eterna dor aguda nos pés não a deixa esquecer que, de fato, ela pertence a uma outra cultura. Para fugir das lembranças de sua atribulada trajetória, May recorre a grandes quantidades de ópio. Em COM OS PÉS ATADOS, Kathryn Harrisson comprova mais uma vez o seu talento de romancista, criando, como bem destacou a revista americana Kirkus Rewiews, uma trama habilmente entrelaçada sobre a sexualidade e o macabro numa rica tapeçaria ficcional. Um dos destaques da moderna literatura americana, Kathryn Harrison é autora dos romances Tchicker Than Water e Exposure, ambos ganhadores do New York Times Notable Books. De Harrison, a Objetiva publicou a ficção O pomar de laranjeiras e o livro de memórias O Beijo em que, num doloroso e surpreendente testemunho, ela narra a relação amorosa que manteve com o próprio pai.